sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Esta miúda




Esta miúda sonhava em viajar desde sempre.
 
 
No sétimo ano já vagueva com as aulas de Geografia e de História, perdia-se com histórias de faraós e intrigava-se com o país dos mil lagos.

Esta miúda apenas pôde sonhar e desejar que um tio afastado da família a levasse numa viagem com os primos. Era o máximo que teria.
 
Esta miúda voou já tarde, com um bilhete ganho num sorteio, na bolsa de turismo de Lisboa, feira encantada a que ia desde sempre coleccionar folhetos e mais sonhos. Uns anos sozinha, outros acompanhada, sempre de mochila, sempre certa que um dia poderia ver para lá do seu bairro dormitório em Lisboa.
 
Quis fugir. Quando a oportunidade surgiu, não hesitou. Foi. Não havia nada a fazer.
 
Foi voar alto, a 39.000 pés, longe do que conhecia e feliz pelas horas em que estava incontactável sempre que voava. Era uma benção e foi uma desculpa deliciosa durante anos.
 
Esta miúda não saberia como seria o calor abrasador dos países árabes, nem as suas orações sempre com vozes masculinas que ecoam por toda a cidade. Jamais imaginaria o som estridente que as mulheres árabes conseguem fazer - zaghareet, os chinelos à entrada das mesquitas, o cheiro intenso a especiarias, ou os gatos vadios a banhos com a sujidade.
 
Em adulta, já não esperaria necessitar de ajuda - e de fechar os olhos - para atravessar as caóticas ruas do Cairo, repletas de carros desenfreados, onde o acelerador parece estar ligado à buzina, originando uma sirene constante e a mais irritante banda sonora - "hey, don't worry. It's the system'', explicação dada e aparentemente plausível por lá.

Viu de perto alto e baixo-relevo nos túmulos egípcios e subiu a uma pirâmide de Gizé, como o Morgan Freeman - sem o amigo rico ou uma bucket list.

Jamais sonharia que um dia realizaria dezenas de voos com peregrinos para Mecca, e que se ainda fechasse os olhos, conseguiria escutar as orações típicas da descida para Jeddah - "labayka la shakira laka labbaik". E as discretas setas em todos os quartos de hotel a apontar a direcção de Mecca? Desconheceria, certamente. 
 
Ficaria sem saber o que é ser apedrejada em Constantina, Argélia, por ter ido passear pela cidade, num dia em que as mulheres ficam obrigatoriamente em casa a cozinhar e a celebrar o fim do Ramadão. Como saberia?

Frutos secos, souks, pechinchas do corniche, pita shoarma ou mango juice seriam o seu Oásis em meses duros por lá, aquela miragem de água no deserto, como nos filmes. Usar abayas e tentar passar por local, sempre atenta aos uniformes brancos da polícia reliogiosa e seus possíveis berros quando implicavam com o lenço da miúda. Perguntarem-lhe pelo seu dote. Tudo isto. Como saberia? Como imaginaria?
 
Esta miúda transportava militares da mesma forma que fazia voos humanitários para sítios em guerra. Transportava muçulmanos para a pedra negra e judeus para Tel Aviv. Trabalhava no norte mas também no sul da Nigéria. Tanto transportava passageiros low cost, como clubes ou bandas de renome. Percebeu também que inesperadamente podemos ser bem recebidos em cidades talibã e ser humilhados pelos desenvolvidos povos ocidentais. Habituou-se a não tomar partidos e viu de perto a pluralidade de culturas. Percebeu que o mundo é bem maior do que algum dia imaginava. É vasto e confuso. 

 
Esta miúda deliciou-se com semanas em praias ainda mais bonitas do que as que constavam nos catálogos Abreu, boiou em cenotes no México, nadou com tartarugas gigantes na grande barreira de coral australiana - viu de perto o seu repasto de medusas - nadou com tubarões, raias e golfinhos, pegou ao colo um koala, admirou um diabo-da-tasmânia e um dingo, e passou uma tarde sentada no meio de dezenas de cangurus. Deu banho a um elefante, viu e ouviu milhares de morcegos a voar nos céus de Cairns. Abraçou cães selvagens na ilha da Páscoa e foi assaltada por macacos no Sri Lanka, trauma ganho desde pequena no Zoo de Lisboa, quando um babuíno roubou à pequena miúda o seu sumo do bongo. O de 7 frutos, ainda para mais.
 
Foi muito melhor do que algum dia esperaria. Deixou de ver Vida Selvagem ao fim de semana na SIC de manhã e passou a ver tudo ao vivo. Todo o tipo de animais vivos.
 
Esta miúda dançou ao som de hip hop na Flórida, encantou-se com os musicais da Broadway, comeu lagosta em Boston e ouviu Alicia Keys, Jay-Z e John Mayer juntos num concerto surpresa em Times Square, por mero acaso.
 
Fez voos fretados apenas com reformados ingleses para irem de encontro aos seus cruzeiros - como a Mrs. Anne, 80 anos, que afastava a sua máscara de O2 para beber de uma só vez as garrafinhas de whisky dadas pela miúda, a quem lhe contava as histórias das suas paixões. Ia encontrar-se com o seu jovem namorado que trabalhava como músico no cruzeiro.  
 
Emocionou-se com cartas de passageiros a agradecer lhe irem ter salvo a vida e da história de um senhor idoso que foi vítima de um atentado no Afeganistão.
 
Passeou por mercados africanos, como um em Accra onde raramente era avistado um branco. Viu caixões em Lagos, Nigéria a serem vendidos nas bermas da estrada e trabalhou com nigerianos. Ainda hoje recorda o pssssssst quando a queriam chamar, o gimme jûce e o gimme rice

Correu como o Forest Gump a caminho da carrinha na Namíbia e no Rio de Janeiro, a fugir de assaltantes. Safou-se sempre. 
 
Foi ao cabo da Boa Esperança - o mítico cabo das Tormentas - andou descalça em inúmeros templos budistas, viu um pôr do sol mágico em Myanmar, usou um chapéu vietnamita e parou propositadamente no meio de uma estrada em Hanói, sem que nenhuma mota lhe tocasse. Fez massagens tailandesas e recusou delicadamente happy endings e ping pong shows
 
Foi a países nórdicos tão evoluídos e secretamente desejou mudar-se para lá. Passeou em Petra, Jordânia, uma das mais incríveis maravilhas. Serviu chá de coca a passageiros na Bolívia e sentou-se com a Mafalda do Quino em Buenos Aires
 
Esta miúda teve mais do que imaginou. Tem um mapa mundo muito riscado e um frigorífico que um dia cai com o peso dos ímans. Tem um vasto registo de sabores, cheiros e sons, memórias que jamais esperaria ter. Nada faria prever.

Teve uma sorte do caraças.

Esta miúda já não necessita de fugir, já entendeu que as viagens foram a sua viagem necessária. As viagens fizeram parte de uma maior e contínua viagem que teria um dia que travar em termos pessoais - a do compromisso. Viveu anos repletos de experiências fantásticas e entorpeceu. Percebeu que ''a liberdade absoluta, em si mesma, não significa nada''. Chafurdou em inúmeras terras e oceanos. Acabou por recusar alternativas, estreitar a liberdade e comprometer-se ao Mondego.