segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Vamos falar de pilotos?


Pilotos, esta classe galáctica que nos conduz pelos céus. Este texto é para vocês.

Tantas divisas para encher as mangas com personas existentes nesses cockpits por aí e tanto a dizer destes escritórios com uma vista incrível. Analisaremos então este mundo visto por quem lida diariamente com pessoal navegante técnico, desde colegas nos escritórios a TMA's, e claro, comissários de bordo.


Despique?
Não. 
Vingança! (com direito à gargalhada final do Thriller do Michael Jackson).

Por onde começar?
 
Talvez pelos novatos, os saídos das escolinhas de aviação ainda com asas de frango da guia. Quando largados, após 10kg perdidos ou adicionados e após contacto com muita diversidade de instrutores e dissabores, eis que exibem finalmente aquele blazer e aquele Ray-Ban de aviador com muita euforia. É vê-los hirtos e histéricos, com uma lanterna a fazer checks aos pneus e com todo o power nas estadias. Passear com um newbie destes num mercado paupérrimo em Abidjan é ir acompanhada por um sorriso constante que não se desfaz, como o das manequins nos concursos para supermodel of the world. São aquele emoji em êxtase que tem duas estrelas nos olhos, sabem? Dizer-lhes que possuem um pequeno joystick é melhor do que dizer-lhes que a aterragem foi má. Nas aterragens deles encostamo-nos bem ao jumpseat e colocamos o lenço a tapar o colar cervical para amparar o impacto. Daí o propósito de usarmos lenço. 

Um comandante adora fingir em duas situações perante um rookie dos céus. A primeira é quando se ri das piadas do novato e a segunda é quando finge estar-se a sentir mal em pleno voo. E a cabineira também aplaude e promove as praxes sempre que possível. Adoramos praticar o Pilot Incapacitation. É o tal CRM.
 
Adoramos o piloto outrora cabineiro, que ousa tocar nos trolleys e fazer a sua bebida. Sabe falar a gíria da galley. É aquele que pede tudo com cuidadinho, sabe bem do que o hospedeiro é capaz.
 
E o piloto que nunca levará a refeição que sobrou da primeira classe?
 
Temos aquele piloto tão aficionado que voa ultraleves nas folgas e aquele que já só busca folgas.

E a senhora piloto? Freaking girl power! O Cabineiro fica louco e os passageiros ainda não acreditam ser possível. Agradecem-lhes à chegada e agradecem aos deuses. O cheiro da alfândega e dos lavabos do aeroporto assemelha-se ao de Grasse em França.

E o que casa com a farda? O amor à aviação fala mais alto. É o que casa com a companhia.
 
E aquele que coleciona assistentes de bordo? E quando as escalas o castigam e as colocam juntas na mesma tripulação? Bendita porta do cockpit. Já sabem o porquê de esta ser uma das profissões mais stressantes que existem.
 
Temos também o piloto entusiasta que tem o toque de mensagens autopilot off, está a par de todos os fóruns e subscreve a revista Take off Sirius, AeroNews, L'Aviation, Air International e recebe notícias diárias e automáticas do Google sobre aviação. O verdadeiro fã do Top Gun. O que está em êxtase com o Top Gun 2020! O que tem uma t-shirt do Goose e outra do Maverick. Mesmo sem jeitinho algum, faz modelismo de aviões e acena aos spotters. No dia seguinte vai em busca das fotos.

E os hobbies deles no cockpit nos voos longos? Atrevo-me?
  
O que adora teimar com os placas, tma's e tudo o que mexe. O "H" no alfabeto aeronáutico é Hierarquia, meus caros. É o que pede laranja descascada no pratinho. Cheiro de laranja nas mãos é para pobre.
 
É diferente do que tem mau feitio. Rosna sempre, sabe os manuais todos e implica com tudo. Pega com as assistentes e chefes mais novas porque sabe que pode. 

E o playboy engatatão, cheio de si, piropos e conversas parvas. Coitado. É tão bizarro como o que tem conversas tão estranhas que nos faz querer mudar de voo ao ver o seu nome. Alguns podem contactar com espécies interestalares, outros vêem como águias... São os que fazem com que achemos que se calhar os pilotos até são mesmo híbridos de aliens com humanos.
 
E aquele que quando coloca a farda se torna imbecil e depois quer ser porreiro nas estadias? É óbvio que apenas nos interessa saber a hora do pick up e é naquele momento que nos lembramos da nossa prima Maria, emigrada na Noruega e que coitada está tão mal. É uma chatice. Coitadita.
 
Existem muitos que têm medo da companhia onde trabalham. São os que não reclamam, não se exaltam nem reportam quando deviam.
 
O piloto que parece que tem o pin do remove before flight preso à aliança (para a tirar em voo) e os divorciados carentes de atenção, que pagam jantares em busca da sobremesa.
 
E os que levam tudo o que sobra dos voos? Vocês sabem lá o que lhes custa a vida, filhos crescidos que nem trabalham nem estudam (geração nini), pensão à ex-mulher, o barco na marina, o treinador de padel...
 
E os que perguntam ao chefe quem vai estar na galley da frente logo no briefing? E os que teimam em escolher a cabineira qual stripper num bar de alterne?

Temos também o engraçadinho, aquele que tem imensas piadolas acerca da melhor e mais incrível das classes e da deles. Exemplo: "Sabes o que é uma assistente de bordo grávida? - Pilot Error!".
 
E aquele que é tãooo tio. Sabe qual, querida? É todo um glamour, um óculo de sol incrível, um perfume intenso, um relógio clássico, um poliglotismo incrível acompanhado de uma voz forte de radialista.
 
Temos aquele comandante que descreve a rota toda ao pormenor e aquele que já nem fala para passageiros. ''O copiloto em nome do comandante e de toda a tripulação'' bem pode fazê-lo.
 
E aqueles pilotos que apenas jantam com os da sua estirpe? 

E aquele comandante que ganha tão bem e divide a conta na estadia por toda a tripulação onde não se inclui, junta o dinheiro de todos e ninguém se apercebe da laia do tipo. Existem. Acontece.


Adoramos também aqueles que fazem mil pedidos, mil cafés. Só pode ser porque nos querem ver.

E os que não esperam que termine o serviço para comer? Mentalidade em que tudo começa no flight deck. Sem eles, nada feito. Eles primeiro, passageiros depois. Que escândalo alterar esta ordem. Piloto é Deus!

Piloto que fica ali na galley, que se mete na conversa dos tripulantes de cabine.
Como assim?!
Xô para a marquise!
 
E o piloto papá, o que aconselha a que não se beba água da torneira, nem se comam saladas, nem se saia do hotel e que obriga a tripulação a ir à igreja ao domingo.

E os dos escritórios que lhes gerem a vida e as birras de parelhas ‘'não quero voar com este'' ou ''não quero ser verificado por aquele'', ''não faço simulador com este’'. São também quem lhes diz referente ao elearning ''é só puxar para baixo a página, comandante. O cursor do rato, comandante. O rato que move o ponteiro. Não sei por que se chama rato, comandante''.
  
Os engenheiros, entendidos do aparelho em si, são também excelentes observadores de pilotos. Adoram os pilotos de aviários, os que não foram informados na formação que teriam de fazer walk arounds quando chove ou neva numa noite fria, ou os que apontam a lanterna à fuselagem com a rapidez supersónica e dispersa como as luzes de um concerto pop.
 
O vulgo TMA também adora partilhar conhecimento com o piloto que descobre na linha que os aviões são possuidores de uma tecnologia extremamente avançada, e fica enternecido quando o esclarece de alguns sistemas.

Temos também o comandante pseudo técnico, aquele que reúne a tripulação à sua volta nos tempos mortos e tenta evidenciar aspetos técnicos, normalmente escutados por pilotos mais novos e pela cabinagem com extrema atenção. Este tipo de piloto fica automaticamente desconfortável quando chega o TMA. O comandante volta de novo a impressionar o puto piloto quando estão a sós no cockpit.
 
TMA fica espantado quando o piloto questiona as decisões tomadas por pessoas certificadas para o efeito, às vezes até o manual do fabricante.
 
O preferido dos TMAs é o piloto Aviador, o que faz o seu trabalho com afinco, tenta obter alguns conhecimentos extra junto das pessoas próprias, faz a separação de poderes no dia a dia, tenta agilizar situações mais complicadas, revela calma e perspicácia em situações não standard e claro, LVO / CAT III e pistas curtas são o momento alto do dia. TMA sabe também reconhecer competências.

Estão aqui presentes alguns, não todos. A verdade é que não vivíamos sem eles. A verdade é que até assim os adoramos. Somos todos aviadores e os aviadores adoram-se. Têm um mundo estranho em comum.

Não tentem entender isto.

Não há nada que nos custe mais que um último voo de um comandante ou o dia em que sabemos de um piloto que partiu cedo. Um piloto não se reforma nem conforma, estará sempre inquieto.

Esta classe enche-nos os jantares de histórias e aventuras e sem nos apercebermos fazem-nos apaixonar por aviação. Vamos criando odisseias em conjunto.

Para concluir, tenho uma frase lamechas de quem começou por imaginar homens a voar:

Todos juntos fomos elevados por penas. O Homem foi elevado ao céu como os pássaros e foi com as penas destes que escreveu cartas e criou teorias e que fez com que hoje estivéssemos todos juntos. Sem classes, todos os que incorporam o sector.

Isso vê-se em cada escritório de aviação repleto de pósteres; na quantidade infinita de merchandising para tontos aviadores (a saboneteira da minha casa de banho é um extintor de halon - confesso também que ofereci outros tantos); nos nossos dedos nas redes dos aeroportos a ver aviões a descolar e a aterrar; nos chocolates que oferecemos às tripulações sem motivo aparente só porque é simpático quando voamos como passageiros; no Natal quando achamos que não há nada mais interessante para uma criança que toda a linha de aviação da Playmobil; quando estamos todos no cockpit a ver os Alpes ou Miami a 39.000 pés ou a ver um avião ao nosso lado repleto de outros tontinhos como nós (que estarão eles a fazer?).

Temos todos a cabeça ao vento, somos todos iguais. 
 
No fundo, vai ser sempre assim.